Aula de ética é em casa, não na escola
Estou começando a procurar escola para o meu filho, e
fico impressionado com o que tenho ouvido e lido a respeito das escolas que
procuro. Ouve-se falar pouco no desenvolvimento cognitivo, em aprendizagem, em
ciências exatas. Menos ainda alguém se referindo a pesquisa empírica ou aos
recentes achados de neurociência. Em compensação, dois temas são unanimidade:
cidadania e ética. É uma distorção que me preocupa.
Em primeiro lugar, porque parece presumir que o ensino
das matérias tradicionais é uma questão resolvida, e que se ater a elas seria
algo menor, reducionista ou, como se diz com certo desdém: “conteudismo”. Não
é. O Brasil vai muito mal nessa área, como comprovam todos os testes
internacionais comparativos. Vai mal não apenas nas escolas públicas. As
escolas privadas brasileiras também são, em geral, ruins, mas salvam as
aparências por ter suas deficiências mascaradas pelos problemas ainda mais
graves das escolas públicas. No Ideb, indicador de qualidade da educação do
MEC, as escolas privadas têm nota média 6, em uma escala que vai até 10. No
Pisa, teste internacional de qualidade de ensino, descobrimos que os 25% mais
ricos do Brasil têm desempenho educacional pior que os 25% mais pobres dos
países desenvolvidos. Ainda nos falta muito, portanto, para que possamos
considerar a transmissão de conhecimento como tarefa cumprida.
Sei que há uma corrente de pensamento no país que acha
que podemos e devemos fazer tudo ao mesmo tempo, e que priorizar a ética não
significa descuidar do conteúdo. Deixo esse assunto para outro artigo, mas já
adianto que não acredito que isso seja possível com o nível de institucionalização
a que chegou o tema no Brasil. Atualmente o MEC exige que os livros didáticos
de matemática (sim, matemática) atuem na construção da cidadania, estimulando
“o convívio social e a tolerância, abordando a diversidade da experiência
humana”. Seria melhor se esse espaço do livro e o tempo do professor fossem
dedicados à atividade nada trivial de familiarizar o aluno com os conceitos
básicos da disciplina. Mesmo quando conseguirem cumprir a função básica de
ensinar matemática, português, ciências, não creio que os professores devam
priorizar de forma ostensiva a pregação ética. São muitas as razões que me
levam a essa conclusão. Em primeiro lugar, o desenvolvimento ético de uma
criança é uma prerrogativa de seus pais. Acredito que um pai tem direito a
infundir em seu filho padrões éticos divergentes do senso comum, que costuma
nortear as escolas. Dou um exemplo claro. A questão da preservação ambiental
virou um imperativo ético, e as escolas marretam esse tema insistentemente.
Para mim, conforme já expus em artigo aqui, o
comportamento ético em um país com o nível de desenvolvimento brasileiro
deveria ser privilegiar o desenvolvimento material humano, mesmo que isso
implique algum desmatamento. O que me parece antiético é deixar gente sem renda
para que árvores sejam preservadas. Não gostaria, portanto, que um professor
ensinasse o contrário ao meu filho. O segundo problema é que não acredito que
os professores brasileiros estejam preparados para travar a discussão profunda
e multifacetada que o tema da ética exige. O mais certo é que a questão desande
para o discurso panfletário, rasteiro, frequentemente ideologizado. Não imagino
que o utilitarismo, o hedonismo ou o epicurismo sejam ensinados em pé de
igualdade com correntes filosóficas que pregam as vertentes mais clássicas da
moralidade judaico-cristã. E, sem esse contraponto, não se está ensinando
ética, mas sim fazendo doutrinamento.
Essa dinâmica está diretamente atrelada a outro problema,
que é a relação hierárquica que caracteriza o ensino formal. Se uma escola
fizesse uma disciplina de ética opcional ou não avaliada, creio que seria
possível que houvesse alguma evolução verdadeira por parte do alunado. Mas, no
momento em que esse tema virou transdisciplinar e vale nota, é óbvio que os
alunos minimamente atilados saberão conformar suas respostas às expectativas e
inclinações de seus professores. Quando eu estava na escola, era formada por
marxistas a maioria dos professores de história, português, geografia e outras
disciplinas da área de humanas. Isso fazia com que eu e muitos outros colegas
nos certificássemos de que toda resposta em prova incluísse alguma lenhada na
burguesia e uma conclamação à construção de um mundo mais fraterno. Não por
convicção, mas porque o nosso falso esquerdismo rendia notas melhores. Tenho
certeza de que os mensaleiros, anões do Orçamento, sanguessugas e demais
patifes também pregavam a justiça universal em seus tempos de escola.
Surge aí mais um problema do ensino-cidadão, que é a sua
total inutilidade. A psicologia evolutiva demonstra que há um substrato ético
que é genético e comum à nossa espécie e a alguns primatas. Complementando essa
camada, acredito que a formação de uma consciência ética está
indissociavelmente atrelada às experiências de vida, não a ensinamentos
acadêmicos. Essa consciência se forma através de um sistema de recompensas e
punições trabalhado primordialmente pelos pais de uma criança, desde seus mais
tenros anos. É o receio da perda do amor paterno que nos leva a agir de forma
ética, em um mecanismo inconsciente. Posteriormente, somam-se a essa base a
história de uma pessoa e a fortaleza institucional do local em que ela vive.
O psicólogo Steven Pinker relata o exemplo do que
aconteceu, literalmente da noite para o dia, quando a polícia da sua Montreal
entrou em greve: uma cidade até então pacata e segura viu-se engolfada por uma
onda de criminalidade que só cessou com o fim da greve. A população não sofreu
um desaprendizado coletivo naquele período: ela agiu como muitos de nós
agiríamos em um cenário em que as violações éticas não fossem punidas. Conhecer
Sócrates ou Nietzsche não deve alterar o comportamento da maioria das pessoas.
Para ser íntegra, a criança precisa receber orientação de seus pais e, depois,
saber que desvios antissociais serão punidos. Alguns professores acreditam que
podem sanar, com sua atuação, as deficiências da família e do estado. É ilusão.
Um estudo recente das pesquisadoras Fátima Rocha e Aurora Teixeira, da
Universidade do Porto, investigou a cola em 21 países e apontou haver relação
direta entre a desonestidade em sala de aula e o índice de corrupção do país.
Para aqueles que imaginam que este autor é um defensor de
uma escola amoral, explico-me. Acredito, sim, que a ética tem papel vital na
escola, mas não no discurso, e sim na ação. Cabe à escola criar um ambiente de
total liberdade intelectual, mas sem esquecer de aplicar no seu dia a dia os
princípios éticos que norteiam a vida em sociedade. Com coisas simples e em
todas as matérias: as aulas devem começar no horário, os professores não devem
faltar, os alunos violentos devem ser punidos, as regras da escola devem ser
aplicadas a todos. E eis aí o busílis da questão: ao mesmo tempo em que são
incompetentes e doutrinárias no ensino da ética, nossas escolas são antiéticas
em sua prática. O exemplo mais claro: a cola. No estudo citado, descobre-se que
83% dos universitários brasileiros já colaram, um dos índices mais altos do
mundo. Cem por cento dos alunos brasileiros já viram alguém colando.
Nos meus tempos de aluno, havia gente colando na grande
maioria das provas. É difícil imaginar que os professores não percebessem o que
estava acontecendo. Em vários casos, os professores notavam e então caminhavam
pela sala, parando perto do “colador”, ou às vezes chamavam seu nome. Mas, se
não me falha a memória, em onze anos de escola jamais vi um único aluno perder
a prova, a nota do bimestre ou sofrer sanção mais séria por um delito que é
provavelmente o mais grave para um ambiente em que se preza o saber. O ensino
da ética, em uma realidade assim, é um deboche. Mais do que um deboche, é um
desserviço: quando nossas escolas falam sobre o tema e praticam o oposto, a
mensagem implícita é que esse negócio de ética e cidadania é papo-furado, pois
já na escola os trapaceiros se dão bem. Melhor seria não falar nada.
Fonte: Revista “Veja” –
28/06/10
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