A mesma expressão já tinha sido declarada
inconstitucional em decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal no
julgamento do Habeas Corpus 97.256/RS, em 1 de setembro de 2010.
A providência do Senado, adotada quase um ano
e meio após a decisão do STF, não deveria causar nenhuma perplexidade. Afinal,
trata-se de aplicação literal do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal.
A
Resolução do Senado tem fundamento na Constituição Federal que lhe atribui a
competência para suspender execução de lei declarada inconstitucional pelo STF:
Art.
52. Compete privativamente ao Senado Federal:
(...)
X - suspender a execução, no todo ou em parte,
de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal
Federal;
É
neste sentido, o teor da Resolução nº 5:
RESOLUÇÃO Nº 5, DE 2012.
Suspende, nos termos do art. 52, inciso X, da
Constituição Federal, a execução de parte do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343,
de 23 de agosto de 2006.
O Senado Federal
resolve:
Art. 1º É suspensa a
execução da expressão "vedada a conversão em penas restritivas de
direitos" do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006,
declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal
nos autos do Habeas Corpus nº 97.256/RS.
Art. 2º Esta Resolução
entra em vigor na data de sua publicação.
Senado Federal, em 15 de fevereiro de 2012.
Em tempos de agigantamento do controle
concentrado de constitucionalidade e de progressiva aceitação da doutrina da
abstrativização dos efeitos do controle de constitucionalidade difuso,
seguiu-se, dessa vez, a engenharia jurídica proposta pelo constituinte
originário para tornar erga omnes os efeitos de declaração incidental de
inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal.
Tecnicamente, o Legislativo apenas reconheceu
a autoridade da decisão do Supremo Tribunal Federal. Não houve inovação no
campo legislativo. A resolução respeitou a separação, a independência e a
harmonia entre os Poderes da República, no que andou bem.
Na prática, a resolução 5/12 do Senado
estendeu os efeitos do julgamento do HC 97256/RS, que beneficiava uma única
pessoa, para todos os condenados na forma do artigo 33, parágrafo 4º da Lei de
Drogas. Foi homenageado o princípio da igualdade, pois, o que é
inconstitucional para um cidadão é inconstitucional para todos.
À época, em setembro de 2010, a decisão do
STF reconheceu que o princípio constitucional da individualização da pena impõe
ao juiz, e somente a ele, o dever de motivar o cabimento ou não de penas
alternativas no tráfico de droga. Não seria lícito ao legislador
infraconstitucional vedar aprioristicamente, com fundamento único na gravidade
abstrata do delito, o cabimento de penas restritivas de direitos.
O
julgamento recebeu a seguinte ementa:
EMENTA:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ARTIGO 44 DA LEI 11.343/2006: IMPOSSIBILIDADE
DE CONVERSÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM PENA RESTRITIVA DE DIREITOS.
DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA À GARANTIA
CONSTITUCIONAL DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (INCISO XLVI DO ARTIGO 5º DA CF/88).
ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. O processo de individualização da pena é um
caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado,
desenvolvendo-se em três momentos individuados e complementares: o legislativo,
o judicial e o executivo. Logo, a lei comum não tem a força de subtrair do juiz
sentenciante o poder-dever de impor ao delinqüente a sanção criminal que a ele,
juiz, afigurar-se como expressão de um concreto balanceamento ou de uma
empírica ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas
do fato-tipo. Implicando essa ponderação em concreto a opção jurídico-positiva
pela prevalência do razoável sobre o racional; ditada pelo permanente esforço
do julgador para conciliar segurança jurídica e justiça material. 2. No momento
sentencial da dosimetria da pena, o juiz sentenciante se movimenta com
ineliminável discricionariedade entre aplicar a pena de privação ou de
restrição da liberdade do condenado e uma outra que já não tenha por objeto
esse bem jurídico maior da liberdade física do sentenciado. Pelo que é vedado
subtrair da instância julgadora a possibilidade de se movimentar com certa
discricionariedade nos quadrantes da alternatividade sancionatória. 3. As penas
restritivas de direitos são, em essência, uma alternativa aos efeitos
certamente traumáticos, estigmatizantes e onerosos do cárcere. Não é à toa que
todas elas são comumente chamadas de penas alternativas, pois essa é mesmo a
sua natureza: constituir-se num substitutivo ao encarceramento e suas seqüelas.
E o fato é que a pena privativa de liberdade corporal não é a única a cumprir a
função retributivo-ressocializadora ou restritivo-preventiva da sanção penal.
As demais penas também são vocacionadas para esse geminado papel da
retribuição-prevenção-ressocialização, e ninguém melhor do que o juiz natural
da causa para saber, no caso concreto, qual o tipo alternativo de reprimenda é
suficiente para castigar e, ao mesmo tempo, recuperar socialmente o apenado,
prevenindo comportamentos do gênero. 4. No plano dos tratados e convenções
internacionais, aprovados e promulgados pelo Estado brasileiro, é conferido
tratamento diferenciado ao tráfico ilícito de entorpecentes que se caracterize
pelo seu menor potencial ofensivo. Tratamento diferenciado, esse, para
possibilitar alternativas ao encarceramento. É o caso da Convenção Contra o
Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas, incorporada ao
direito interno pelo Decreto 154, de 26 de junho de 1991. Norma supralegal de
hierarquia intermediária, portanto, que autoriza cada Estado soberano a adotar
norma comum interna que viabilize a aplicação da pena substitutiva (a
restritiva de direitos) no aludido crime de tráfico ilícito de entorpecentes.
5. Ordem parcialmente concedida tão-somente para remover o óbice da parte final
do artigo 44 da Lei 11.343/2006, assim como da expressão análoga “vedada a
conversão em penas restritivas de direitos”, constante do parágrafo 4º do artigo
33 do mesmo diploma legal. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com
efeito ex nunc, da proibição de substituição da pena privativa de liberdade
pela pena restritiva de direitos; determinando-se ao Juízo da execução penal
que faça a avaliação das condições objetivas e subjetivas da convolação em
causa, na concreta situação do paciente.
Paradoxalmente,
embora a Constituição Federal tivesse sido interpretada e reafirmada em seus
valores democráticos, humanitários e liberais, tudo após intenso debate dos
Ministros, o julgamento só valia para um único condenado. Enquanto isso,
milhares de outros sentenciados em idêntica situação jurídica continuavam
entupindo dia após dia o nosso já degradado sistema penitenciário.
A inconstitucionalidade sinalizada pelo STF na
decisão não foi acatada, salvo raríssimas exceções, por juízes de primeiro grau
e por Tribunais.
O principal argumento técnico utilizado pelos
refratários à decisão era o de que ela não vinculava os juízes, ou seja,
magistrados e desembargadores continuavam tendo liberdade para decidir de modo
contrário, segundo o livre convencimento motivado. O argumento ideológico
continuava sendo a necessidade de rigoroso combate ao tráfico de drogas.
Deveras, a questão é complexa. Não se nega que
o tráfico continue merecendo combate e nem que ele é a causa, direta ou
indireta, de variadas formas de criminalidade. Por outro lado, constata-se que
o aprisionamento em massa não diminuiu e nem mesmo afetou as grandes
organizações criminosas. Basta verificar que o Brasil nunca teve tantos presos
por envolvimento com drogas e, mesmo assim, nunca enfrentou tamanha endemia no
consumo de crack e de outras substâncias ilícitas. Como pode haver tanto
consumo se tantos traficantes estão presos?
Tudo indica que o vetor da atual política
criminal de encarceramento está mal orientado.
Isso sem dizer que prender demais provoca
agravamento da falta de vagas no sistema penitenciário, intensifica as
violações de direitos humanos causadas pela superlotação, desvia aportes de
verbas para tratamentos de dependentes e usuários, aumenta gastos públicos,
afeta as famílias dos envolvidos etc.
Com a resolução 5/12 do Senado, deixa de haver
vedação abstrata de penas alternativas para condenados por tráfico na forma do
artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas.
Caberá aos juízes, nesses casos, verificar o
cabimento das penas restritivas de direitos na forma dos artigos 44 e seguintes
do Código Penal.
O artigo 44 da Lei de Drogas que também contém
a expressão “vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos” não
atingirá mais as hipóteses em que a causa de diminuição de pena do artigo 33,
parágrafo 4º tiver sido reconhecida. Preserva-se a proibição do artigo 44 para
hipóteses diversas, conquanto fosse de bom alvitre também a sua eliminação do
plano normativo.
Convém lembrar que a condenação na forma do
artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas pressupõe que o réu tenha sido
comprovadamente considerado primário, de bons antecedentes, que não se dedique
às atividades criminosas e nem integre organização criminosa. Preenchidos tais
requisitos, exsurgirão cristalinos tanto o direito à aplicação da causa de
diminuição da pena quanto o direito à substituição da pena privativa de
liberdade por restritiva de direitos.
Reincidentes,
membros estáveis ou esporádicos de quadrilhas ou facções e indivíduos
comprovadamente inseridos no organograma de organizações criminosas não farão
jus ao benefício, como nunca fizeram.
Contudo, viciados e dependentes que só têm na
própria venda de drogas o meio de sustento do vício e jovens adultos sem
perspectivas, mas também sem histórico criminoso, que são a esmagadora maioria
da atual população penitenciária do Brasil, não estarão fadados ao tratamento
padronizado de aprisionamento em massa e poderão encontrar nas penas
restritivas de direitos um meio de reinserção social, sem que isso signifique
despojamento estatal do caráter retributivo da punição.
Em suma, a resolução garante que cada caso
será avaliado individualmente e segundo critérios empíricos, como impõe o
artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal.
Doravante, como convém em Estados de Direito,
os juízes não poderão simplesmente invocar a proibição literal da lei, mas
deverão fundamentar em razões concretas a necessidade do encarceramento ou a
não suficiência das penas alternativas para retribuição do mal causado pelo
crime. De antemão, o direito à pena alternativa, quando reconhecido o artigo
33, § 4º da Lei de Drogas, figurará como direito público subjetivo do
condenado.
A resolução tem efeitos imediatos. Processos
em andamento e execuções criminais deverão ser revistos. Condenados na forma do
artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas que estejam cumprindo pena privativa
de liberdade deverão passar pelo crivo do juiz das execuções penais, a quem
competirá individualizar novamente a pena, na forma do artigo 66 da Lei
7210/84.
No campo das prisões cautelares surge
novamente e com refrescado vigor o argumento da proporcionalidade. Não haverá
razão para decretar a prisão preventiva se for possível vislumbrar que, ao
final, o réu fará jus a pena alternativa.
A resolução 5/12 do Senado representa, portanto,
medida salutar para o equacionamento da questão penitenciária, reafirma
direitos humanos consagrados na Constituição Federal e na ordem internacional e
reforça a dimensão e a efetividade do princípio constitucional da
individualização das penas no país.
Fonte:
PINHEIRO, Lucas Corrêa
Abrantes. A Resolução nº
5/2012 do Senado e a pena alternativa no tráfico de drogas. Jus
Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3164, 29 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21179>.
Acesso em: 29 fev. 2012.
GOMES, Luiz Flávio. Conforme STF e Senado Federal cabem
penas restritivas de direitos (substitutivas) no tráfico de drogas.
Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3164, 29 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21188>.
Acesso em: 29 fev. 2012.